Memórias das duas rodas @ Pedro Silva | Sunday, Jul 26, 2020 | 8 minutes read | Update at Sunday, Jul 26, 2020

Durante o tempo que vivi na cidade de Antuérpia, Bélgica, a bicicleta fez parte da minha vida. Já na altura fazia longas distâncias, mas sempre em ciclovias, na neve e por vezes à chuva. Após o regresso a Portugal, a paixão pelas duas rodas despertou-me ainda mais. Nessa altura dois grandes amigos de infância, Nuno e o Renato, convenceram-me a andar de bicicleta, num sítio que viria a marcar-me também, a Serra da Arrábida.

Mais tarde, conheci o Pedro Reis, um grande amante do ciclismo de longa data. Eu morava perto dele, na Charneca, concelho de Mafra, e um dia convidou-me para um grupo de amigos, que todas as quintas feiras à noite partiam à aventura, ora de estrada ora de BTT. Eles eram o João, o Nuno (Milharado), o Rui Lucas, o Vasco, o Joaquim (carpinteiro) e Vítor (Chico das Cebolas), durante anos palmilhamos as serras saloias à noite... a do Socorro era constante, foi sem dúvida uma das melhores experiencias de bicicleta.

O Pedro Reis tinha também uma equipa de BTT, a Motoreis, que participava em competições. Chegamos a andar todos juntos em “passeios” de BTT. Recordo um: Serra de Montejunto que foi duro, mas duro. Aquele pessoal era da pesada, subiam e desciam paredes, mas montados nas bicicletas. Recordo o nome de alguns, o Pedro Lopes, o Hélder Calado e o David Inácio.

No concelho de Mafra existe um quase infinito número de trilhos, com as mais variadas dificuldades. Lembro-me que a cinco metros da porta de casa tinha dois trilhos, um virado para a Povoa da Galega, outro para a Venda do Pinheiro. Se desejasse ir sentir a maresia à Ericeira e voltar era só uma questão psicológica, mas mais de pernas.    

Depressa o gosto pelo BTT destacou-se da bicicleta de estrada, aproximação que existia com a natureza e a socialização durante as voltas com os amigos foi decisivo.No entanto nunca deixei de fazer estrada, na realidade passou a um complemento. 

A minha primeira maratona foi em Portalegre, os 100km que nunca mais tinham fim. Nesse ano teve três mil participantes, na primeira subida olhei para trás e deslumbrado vi um mar de capacetes em movimento, foi algo inesquecível. Foi também descobrir as minhas capacidades físicas, e psicológicas. A noção de treino foi aprimorada, pois ela supera uma grande parte das dificuldades quando fazemos muitos km.

Após o fim da equipa Motoreis, alguns dedicaram-se ao lazer do BTT, deixando a competição. Foi assim que vim a conhecer um grande amigo, o Luís Francisco, mais conhecido por Luís Jorge, que também competia no BTT. Amante da natureza e desportista nato, partilhávamos o mesmo gosto das duas rodas e pela natureza.

Ele costumava dizer quando alguém se juntava ao grupo: “ou vai gostar para sempre, ou nunca mais vai querer andar de bicicleta”. E tinha razão, foi o que aconteceu a muitos de nós, as “tareias” viriam a ser desejada anos a fio. Debaixo do sol, a chuva, a lama, o frio e o terreno difícil era o que nós desejávamos. O obstáculo vencido criava adrenalina e esperança, era a força para continuar.

Na terra do Luís Jorge, a Cachoeira, também pertencente ao concelho de Mafra, lá fazia-se a “prova dos nove”. Uma espécie de recrutamento militar. Vinte km na Cachoeira equivalia a cem num local mais fino, uma verdadeira “fartura” para o BTT. Chamavam-lhe a cereja no topo do bolo, a famosa descida do Geres, sempre requisitada, uma espécie de orgulho e ícone daquela terra. A sociedade recreativa da Cachoeira, ou a casa do Luís Jorge eram sempre o ponto de encontro quando ali andávamos.    

Depressa surgiu a ideia de conhecer outros destinos para o BTT. Algo que o Luís já fazia há anos na competição do motocross. Ele tinha um bom sentido de orientação, algo que era impressionante para nós no meio das serras. Pouco a pouco convenci-o a utilizar às novas tecnologias, e após alguma resiliência o GPS passou a fazer parte do equipamento do grupo. As voltas eram estudadas ao pormenor, nessa altura tínhamos as cartas militares de Portugal, e só depois veio o Google.

No computador desenhávamos o percurso e depois passávamos para o GPS. Assim da teoria à prática nasceu a nossa primeira travessia de BTT. Com inicio em Arouca, e termino em Piódão.

       

Logo na primeira etapa, esta ficou marcada por um erro meu, e hoje passados tantos anos ainda sou recordado desse desacerto. Passamos o dia a subir, quando no papel era a descer. Erros de principiante, mas no final do dia tudo correu bem, e ainda valeu muita gargalhada. O jantar nesse dia também foi engraçado, no único local para comer longe de tudo o proprietário dizia já não ter nada, por ser fora de horas, quando perguntamos o que ainda tinha, era só um manjar dos deuses do Olimpo, ficamos na dúvida como seria numa situação normal.  A emoção era tremenda, tal como a espectativa que tudo corresse bem. Sobrevivemos nas serras praticamente durante uma semana em contacto com a natureza, o verde, o azul do céu, a música dos rios e das cascatas, é algo inexplicável e de extrema beleza. Foi também a primeira fez que me ausentei da família, foram novos sentimentos. Por fim registamos tudo com fotografias e vídeos, e num jantar mais tarde distribuí DVDs por todos. Tinha sido uma semana de puro BTT entre amigos.

Nos anos seguintes outras travessias sucederam, como o GR22, a grande rota das ,  aldeias históricas. Uma volta circular à volta da Serra da Estrela, com 600 km de comprimento e 12.000 metros de elevação, que ligava 12 aldeias: Almeida, Belmonte, Castelo Mendo, Castelo Novo, Castelo Rodrigo, Idanha-a-Velha, Linhares da Beira, Marialva, Monsanto, Piódão, Sortelha e Trancoso. Esta foi icónica, pelo menos para mim, superou todas as espectativas. Para quem sempre viveu na cidade ou na periferia como eu, aqui tivemos o privilegio de conhecer a hospitalidade em pessoa. Lembro-me da etapa Piódão - Castelo Novo que demorou mais tempo que era previsto, fomos obrigados a pernoitar em Dornelas do Zêzere, sem nada marcado. Paramos num centro de dia e perguntamos se existia um local para todos pernoitarmos, a resposta foi obvia. Sem nos apercebermos e por iniciativa própria os assistentes do centro de dia começaram a contactar os vizinhos e familiares da aldeia, mais rápido que um hotel de cinco estrelas se arranjou solução. Uns ficaram na casa do “Zé”, outros na casa do “Manuel”, mas todos ficamos em Dornelas do Zêzere a dormir. De manha o pequeno almoço foi em Barroca, uma localidade muito perto de Dornelas do Zêzere, e aqui outra surpresa, quando contamos a nossa historia, os pasteis de nata ficaram por conta do patrão. É das rotas que continuo até hoje a recomendar, mesmo para quem não pratica o BTT.

Logo depois nasceu o grupo, os “Saloios à Descoberta”. A ideia impulsionada por Luís Jorge e pelos restantes que se identificavam com as ideias de visitar sítios com historia, rios para mergulhar, bons trilhos, boa gastronomia à Portuguesa, a partilha e o convívio entre amigos. O Luís Jorge, eu, o Rui Lucas, o Joaquim (Carpinteiro), o Vítor Ferreira (Chico das Cebolas), o Henrique Avelar, o Luís Fernandes, o Nuno (Necas) e o Pereira formamos o grupo que até teve direito a equipamento patrocinado por algumas empresas da zona. O Pereira ficou encarregue do logotipo, o Rui Lucas e Necas da encomenda.

As nossas aventuras tiveram até destaque numa revista da modalidade, a FreeBike.

De norte a sul de Portugal pedalamos, e o grupo de amigos foi crescendo, sempre triunfando nos seus ideais. Foram tempos que ainda hoje recordo com nostalgia.

Após o fim da volta ao concelho Mafra, organizada pela camara municipal de Mafra, surgiu a ideia e embora de um modo pouco informal de dar continuidade à volta, assim durante alguns anos se manteve a tradição, ainda com menos participantes. Partíamos da Cachoeira até à Ericeira, lá comíamos a bela tosta à Ribeira D’ilhas, um mergulho e voltávamos. O passeio era inovador para à altura, não existiam fitas nem marcações, o GPS era necessário para realizar a volta. Ajuda mecânica era a Motoreis, o abastecimento pelo Chico das Cebolas, isto sem qualquer custo para o participante. O verdadeiro amor à camisola.

Embora a minha ausência, como a de outros, o grupo ainda prevalece. O César Lopes, um outro membro e amigo, levou as travessias a outro nível, criou um novo projeto, mas manteve o nome dos “Saloios à Descoberta”, faz agora o 10º aniversario. Este conta com uma pagina de inscrição em www.travessiabtt.blogspot.com, onde é possível também visualizar todas as aventuras.

Eu, ainda sou fascinado pelas duas rodas, e pelo prazer que elas proporcionam. Voltei novamente às origens, e percorro mais uma vez os trilhos da Serra da Arrábida. Ainda que por vezes sozinho, ou com os dois amigos de infância, 20 anos mais tarde. Muitas aventuras ficam por relatar e muitos amigos ficam por mencionar.

Sinto-me orgulhoso, pois acho que passei o “bichinho” aos meus dois filhos. Hoje, percorrem os mesmos caminhos que o pai outrora fez, em conjunto com os filhos desses mesmos amigos, aqueles que tive o privilegio de conhecer e passar horas sem fim a pedalar. É a historia a repetir-se.

Espero como eu façam grandes aventuras, porque o tempo é agora, e nunca o amanha.

 

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